As quatro causas e as cinco vias — Feser

Vinicius Dias
7 min readDec 13, 2017

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Traduzi mais um artigo de Feser. Creio que se trata de um artigo bem básico. Feser tenta mostrar algumas correlações entre as quatro causas de Aristóteles e as cinco vias de santo Tomás, o que é de um recurso pedagógico muito interessante para questões metafísicas que às vezes parecem tão complicadas.

De qualquer forma, escrevi um artigo para introduzir as quatro causas e a noção de ato e potência para quem não sabe nada do assunto, confira aqui:

Outro comentário a se fazer antes de postar o artigo traduzido propriamente dito é dizer que o artigo de Feser, além de sua utilidade pedagógica, me fez compreender melhor a terceira via. Eu nunca havia entendido a diferença entre ela e o argumento cosmológico de Leibniz. Apesar de bem semelhantes, são argumentos distintos.

Eis a tradução de Feser feita por mim:

Mostrar paralelos e correlações pode ser uma coisa filosoficamente iluminadora e pedagogicamente útil. Por exemplo, os estudantes de Aristotelismo-Tomismo (A-T) estão familiarizados com a correlação de que a alma é para o corpo o que a forma é para a matéria como também o ato é para a potência. Então aqui temos uma fórmula pré-pronta de algumas correlações entre alguns conceitos metafísicos mais gerais de santo Tomás, por um lado, e os argumentos para a existência de Deus pelo outro. É bem sabido que a segunda via de santo Tomás para a existência de Deus está relacionada com a causa eficiente enquanto a quinta via está ligada à causa final. Mas haveria mais paralelos assim para extrairmos? Será que cada uma das quatro causas de Aristóteles possuem alguma relação especial com uma das cinco vias? Talvez sim, e talvez existam outras correlações entre outras noções-chave do quadro geral do A-T para acharmos.

Considere primeiramente o mais geral dos conceitos da metafísica A-T e suas interrelações. Como eu sugeri no Scholastic Metaphysics , o edifício inteiro se baseia na distinção entre ato e potência (ou atualidade e potencialidade), que eu explicitei no capítulo 1 desse livro (após o prolegômeno do capítulo 0, que refuta o cientificismo, etc.). O capítulo 2 então mostra como, da teoria do ato e da potência, nós podemos derivar as noções de causa eficiente e causa final. A causa eficiente envolve a atualização de uma potência. A causa final entra no quadro na medida em que a potência é sempre direcionada em direção a certo resultado ou série de resultados como um fim.

O capítulo 3 continua a mostrar como forma e matéria, que são os principais componentes da substância física, também seguem da teoria de ato e potência. Matéria-prima, que é a causa material da substância física, é pura potencialidade para recepção da forma. A forma substancial, que é a causa formal da substância material, é o que atualiza a matéria-prima. O capítulo 4 mostra então como a distinção entre essência e existência, que (diferente da distinção entre forma e matéria) se aplica às substâncias imateriais tal como às substâncias físicas, o que decorre igualmente da teoria de ato e potência. A essência de uma coisa é, por si mesma, meramente potencial; existência é o que atualiza essa potencialidade da essência para que tenhamos uma substância concreta.

Então, nós temos os seis conceitos fundamentais do A-T: A distinção ato/potência; causa eficiente; causa final; causa formal; causa material; a distinção essência/existência.

Agora considere os argumentos para a existência de Deus de santo Tomás (que eu discuto e defendo com detalhes no capítulo 3 do meu livros Aquinas). A primeira das cinco vias é o argumento que parte do movimento ou mudança até chegar ao Divino Motor Imóvel. A segunda via é o argumento que afirma que uma série de causas eficientes conduzem a uma divina Causa Incausada. A terceira via parte do fato que as coisas nascem e morrem e então argumenta que há a necessidade de um Ser Necessário. A quarta via argumenta que os graus de perfeições das coisas nos conduzem ao Ser Mais Perfeito. A quinta via argumenta que a existência da causa final nos conduz a uma Inteligência Suprema que direciona todas as coisas aos seus respectivos fins.

Santo Tomás conhecidamente também apresenta, em O ente e a essência, um argumento da existência das coisas nas quais há a distinção entre essência e existência que conduz a uma causa divina que é subsistente por si mesma. É o que é chamado algumas vezes de “prova existencial” e a sua relação com as cinco vias é incerta. No meu Aquinas sugiro que o argumento corresponde à segunda via, mas isso certamente não é óbvio, e nem todo mundo aceita essa sugestão. Como falo mais abaixo, talvez pudéssemos ler as correlações de outra maneira.

Portanto, há (possivelmente) em santo Tomás ao menos seis diferentes argumentos para a existência de Deus: As cinco vias mais a “prova existencial”.

Talvez você veja aonde isso está nos levando. Há uma interessante correlação entre as seis noções metafísicas fundamentais do A-T, por um lado, e os seis argumentos da existência de Deus no outro? Possivelmente.

Santo Tomás está surpreso ao ver um discípulo tão bom como Feser.

Movimento ou mudança, implica, para o A-T, a atualização da potência, então a primeira via naturalmente está correlacionada com a teoria do ato e da potência. A segunda via, como já notado, está obviamente correlacionada com a noção de causa eficiente.

E a terceira via? Bem, a via que chega ao absoluto Ser Necessário parte da coisas que são o oposto disso — isto é, das coisas que são geradas e corrompidas, que nascem e morrem. Note que (ao contrário do que as discussões modernas sobre a terceira via dão a entender) essas coisas não são exatamente as mesmas coisas que “seres contingentes” no entendimento contemporâneo desse termo. Quando os filósofos contemporâneos falam sobre uma coisa “contingente”, o que eles querem dizer é que é uma coisa que a princípio poderia não existir. Anjos estariam nesse sentido de contingência, uma vez que são substâncias imateriais e portanto incorruptíveis, eles não existiriam caso Deus não os criasse. Para Aquinas, ao contrário, anjos são necessários em vez de contingentes, precisamente porque elas são incorruptíveis no sentido de que nada na ordem natural pode destruí-los. O que os diferencia de Deus é que eles ainda precisam ser criados e sustentados na existência por Deus, então eles são necessários apenas em um sentido relativo e não de maneira absoluta. Obviamente, então — e como alguns críticos da terceira via não percebem, o que os leva a entenderem de maneira totalmente errônea o argumento — santo Tomás não usa a palavra “necessária” no sentido em que os filósofos contemporâneos usam. E partir de coisas como anjos com certeza não é uma boa maneira de iniciar um argumento como a terceira via.

Ele parte das coisas que são materiais e, portanto, corruptíveis de uma maneira que as substâncias materiais não o são. Portanto a terceira via possivelmente se correlaciona com a noção de causa material. Ou seja, assim como a primeira via essencialmente parte da noção de ato e de potência e considera Deus como ato puro atualizador da potência, e a segunda via parte da noção de causa eficiente e considera Deus como a fonte de todo poder causal, a terceira via essencialmente parte da corruptibilidade implicada na noção de causa material e considera Deus como o ser absolutamente incorruptível e por isso necessário no sentido mais forte possível.

A quarta via é reconhecida por ser a via mais platônica das cinco vias. Santo Tomás fala como os seres que tem bondade de uma maneira limitada participam do Bem em si mesmo, o que tem ser de uma maneira limita participa daquilo que é o Ser em si mesmo, e assim por diante, nos lembra a afirmação de Platão que diz que as coisas os são conforme participam das formas. É claro, santo Tomás era mais aristotélico do que platônico — e assim tem uma concepção de forma mais aristotélica do que platônica — e (como argumentei em Aquinas) o que está em jogo na quarta via é, especificamente, o que os medievais chamavam de transcendentais (ser, bondade, verdade, etc.), e não apenas alguma coisa antiga para qual Platão dizia haver uma forma. Ainda assim há uma especial correlação entre a quarta via e a noção de causa formal.

A quinta via, como já notado, está obviamente correlacionada com a noção de causa final. E a “prova existencial” está obviamente correlacionada com a distinção entre essência e existência. Se a prova existência realmente é (contrariamente ao que eu sugiro em Aquinas) um argumento distinto da segunda via, a base da distinção pode ser essa: Enquanto ambos os argumentos dizem respeito à explicação da existência das coisas e ambos chegam a Deus como a explicação suprema de sua existência, a maneira de abordar é diferente em cada caso. A segunda via aborda a questão pela noção de causa eficiente da existência da coisa; a prova existencial aborda a questão pela noção da composição de essência/existência da coisa.

Se tudo isso estiver correto, então a ideia é que, de cada uma dessas seis noções básicas, possamos chegar a Deus como explicação final. E as correlações seriam, de forma resumida, como se seguem abaixo:

Ato/potência >Primeira via

Causa eficiente>Segunda via

Causa material>Terceira via

Causa formal>Quarta via

Causa final>Quinta via

Essência/existência>Prova existencial

De novo, eu apresento isso apenas como uma reflexão pedagógica. Talvez mais reflexões possam completar o processo e nos dar boas séries de correlações nessa linha. Mas talvez isso nos leve a resultados diferentes, em outras correlações soltas, ou nos leve a ver que só as correlações mais óbvias (a correlação entre a segunda via e a causa eficiente e a quinta via como causa final) são realmente defensáveis.

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