Minhas impressões sobre Da Arte do Belo de Carlos Nougué

Vinicius Dias
13 min readJan 26, 2019

--

Acabo de ler a obra do professor Nougué. Resolvi escrever um texto para descrever minha sensação. Poderia chamar esse texto de resenha, mas isso atribuiria uma seriedade muito grande a esse texto. Não tenho condições de avaliar perfeitamente o livro.

A minha edição é autografada

Em primeiro lugar, confesso que ignoro (ou ignorava, melhor dizendo) quase completamente o status quaestionis das questões estéticas. Minha cultura de arte do belo também é relativamente pequena, como se supõe numa pessoa nascida do Brasil. Por grande obra da providência ainda passei a ouvir um pouco de Bach, Vivaldi e Mozart na adolescência, costume que guardo até hoje. Antigamente também escutava um pouco de Wagner, Beethoven e tudo o que há de ruim. Além do rock moderno.

Em literatura li algo de bom, um Dostoievski, Sófocles e Ésquilo por exemplo. Mas consumi muita porcaria também como Camus e Sartre.

Em minha vida toda eu praticamente ignorei a pintura e a escultura, só passei a valorizá-las depois que retomei o fervor da fé há alguns anos.

Quanto às outras artes como o cinema, até que vi centenas de películas, contudo, infelizmente é uma arte que foi quase totalmente sequestrada pela propaganda ideológica. De nota positiva, acho que só vi Nárnia e Senhor Dos Aneis, que são filmes por serem estudados mais cuidadosamente.

Em suma, em minha vida toda consumi muita coisa ruim e fui vítima dos ideólogos. Mas o livro do professor Nougué promete ser uma reação à má arte de nossos dias.

Apesar do meu pouco conhecimento, tentarei comentar o que achei do livro. Antes de ir ao comentário propriamente dito, também gostaria de lamentar que infelizmente meu tio faleceu de morte trágica em meio à leitura do livro. Até o meio do livro sentia estar acompanhando bem o ritmo do professor, contudo, após a morte do irmão da minha mãe, perdi um pouco o fim da meada do livro. Contudo, ler as causas e as propriedades da arte do belo para finalizar o livro não foi totalmente inócuo, tirei lições importantes para o resto de minha vida.

Do autor

Carlos Nougué é professor da Escola Tomista. Tradutor de mais de 300 livros, há 20 anos estuda o tomismo e como diz em sua aula magna de seu curso “aposta a sua vida nesse projeto”. Santo Tomás de Aquino foi talvez a maior mente católica depois de Jesus e Maria. Eleito Doutor Comum pela Igreja, é considerado o maior teólogo de todos os tempos. Ao que parece, recusava o nome de filósofo e corrigia os outros dizendo “sou teólogo”. E quem pode lhe tirar a razão? Por acaso alguém com doutorado aceitaria ser chamado de “olhado o graduado no ensino médio?”. Contudo, está implícita uma doutrina filosófica em santo Tomás de Aquino, a mais elevada de todos os tempos e recomendada pela Igreja. O Doutor Angélico, porém, jamais a sistematizou, deixando a cargo de seus futuros discípulos. Por duas razões, uma boa e outra ruim, até hoje não temos uma boa sistematização de sua doutrina. A razão boa é que a filosofia de santo Tomás é superabundante. Devido ao seu enorme gênio, é muito difícil que alguém consiga sistematizá-la já que seus discípulos estão a anos-luz da sabedoria do mestre, o que é a razão ruim.

Com quase 700 anos após a sua morte, há muita história e percalços na tentativa de sistematizar a filosofia de santo Tomás. Quanto ao professor Nougué, podemos dizer com orgulho que é um dos capítulos mais bem-sucedidos dessa longa história. Influenciado pelo purismo de Calderón e corrigindo os erros de tomistas passados, Nougué dá um passo além e consegue transmitir a doutrina tomista com muita didática. O que era muito obscuro se torna mais claro com o nosso carioca.

Minha edição

Já com um ano e meio de Escola Tomista, depois de já ter lançado o curso Por Uma Filosofia Tomista (e vários outros em seu site), escrito sua Suma Gramatical e seu Do Papa Herético, Nougué escreve Da Arte do Belo.

“Protetor de capa” para melhor guardar a sua edição!

Da capa

Com 588 páginas o livro insinua desde já o seu caráter definitivo. Na capa temos a obra de Rembrandt Filósofo em Meditação. Tal escolha foi bastante acertada na minha opinião. Nada melhor que uma representação de um filósofo para a capa de um livro filosófico sobre a arte do belo. Mas há um motivo discreto que faz ser essa capa ainda mais acertada. Inclusive é um detalhe que só fui descobrir com a leitura do mesmo livro. No lado direito, há bem discreta uma mulher atiçando o fogo sendo iluminada. Há um contraste entre a luz do filósofo e a luz do trabalho. Tal contraste representa muito bem as Artes do Belo. Uma questão levantada ao longo do livro é a aparente mistura entre arte servil e arte liberal da arte do belo. Com efeito, ainda podemos ver nesse contraste a luz exterior do trabalho servil e a luz interior do filósofo. Em verdade, como será demonstrado até o final do livro, o que importa mesmo é a beleza intelectual da Arte do Belo, que provoca a sua deleitabilidade séria. Não podemos nos esquecer, é claro, o que Nougué sempre nos lembra ao longo do livro. A arte do belo não pode ter apenas uma finalidade boa, mas deve ser bela, pois uma arte bem intencionada, mas malograda esteticamente dá margem para que as pessoas se aproximem de obras bem-sucedidas esteticamente, mas horríveis quanto ao seu fim.

Do Sumário

Antes de comentar o conteúdo, vou deixar aqui fotos que tirei do sumário. Creio que o professor e nem o Marcel ficarão bravos por isso. É comum que algumas livrarias deem acesso ao sumário dos livros. Através dele podemos ter uma noção da forma do livro.

Finalmente, o livro

Qual é a sua finalidade? É a de demonstrar a existência e a necessidade de uma Ciência da Arte do Belo e extrair suas propriedades. Uma questão que frequentemente se levantou no livro foi “se há uma parte de ciência para a música, literatura, teatro etc porque então uma Ciência da Arte do Belo?”. A justificativa é a mesma que podemos dar para a necessidade de se estudar biologia para se conhecer o homem, pois o homem não é só racional (diferença específica), mas também animal (gênero). Uma ciência só da espécie é incompleta . Para nosso conhecimento ser perfeito precisamos da ciência do gênero também.

A primeira parte do livro possui a finalidade de responder às quatro questões que sempre devemos fazer ao se investigar uma ciência: se é (an sit), o que é (quid sit), se tem parte, de que classe, quais são e sua verdade, bondade e necessidade (no latim isso tudo se resume à questão quia) e porque causa (propter quid).

Depois da introdução explicando o esquema geral do livro, temos o maior capítulo do livro que trata justamente da questão an sit. Nada mais é do que uma história do problema tendo por finalidade fazer induções a partir do que já foi falado sobre o assunto. Neste capítulo o professor se guia pelos Études d’Esthétique Médiévale de Edgar de Bruyne. Nougué o vai citando, o comentando e o corrigindo conforme o necessário. Findo o período medieval, o professor dá uma passada pela filosofia moderna.

No quid sit comentaremos as ideias que foram úteis para constituir a Ciência da Arte do Belo, mas no geral, a investigação por sua existência é bastante frustrante. Ao longo da história se vê diversas confusões. No período clássico e medieval se observa uma confusão generalizada entre poética, retórica e gramática. No período contemporâneo vemos uma mistura de arte do belo com estética (que é da metafísica). Na verdade, a confusão no período moderno pressupõe muitos outros problemas. Por exemplo, o que é o homem? Mais tarde no livro o professor Nougué diz que a Ciência da Arte do Belo (e outras) existem secundum quid, pois são hábitos no homem. Se partimos de uma antropologia errônea, como que por um efeito dominó, é claro que vamos ter problemas nos hábitos do homem.

Alguns pontos particulares desse an sit é que o professor novamente mostra sua visão sobre as artes liberais, sugerindo uma correção à luz do tomismo.

Também é de se notar a diferenciação entre poética e Sagrada Escritura, separação pouco precisa antes de Santo Tomás como assinala o professor. Muitos grupos gnósticos se aproveitam dessa confusão para de certa maneira divinizarem a arte ou de reduzirem a Sagrada Escritura à mera arte, foi muito importante o professor tocar nesse ponto. Quando li essa parte, também me lembrei do livro de Daniel Scherer no capítulo em que critica a filosofia de Voegelin. Ao que me parece, o alemão comete justamente esse equívoco em sua obra, colocando a Revelação como apenas uma forma mais elevada de simbolismo.

A Raiz Antitomistada Modernidade Filosófica de Scherer

Quid Sit

Neste capítulo o professor comenta como definimos a ciência, entre outras noções filosóficas importantes para enfim dar a definição completa da Ciência da Arte do Belo.

Antes de comentá-la propriamente dita, gostaria de destacar a didática de Nougué. Não é um tratado fácil, o sujeito dele em si mesmo é muito complexo e o professor utilizou dos recursos mais sofisticados da filosofia tomista para tratá-lo em sua totalidade. Contudo, creio que não seja absolutamente impossível lê-lo sem ter conhecimento prévio de tomismo. Ao longo de todo o livro o professor vai introduzindo os termos difíceis. Às vezes até faz longas notas de rodapé os explicando com mais detalhes. Também devo destacar a estrutura helicoidal do livro. Não me lembro agora qual ponto em específico (esqueci-me devida à trágica morte de meu tio, foi nesse ponto que perdi o fio da meada do livro), mas o professor retomou uma mesma questão quatro vezes. Na primeira a solução parecia totalmente impossível, na segunda começávamos a vislumbrar sua solução, mas ainda faltava algo. Na terceira vez a questão parecia totalmente resolvida, mas o professor insistia com alguma dificuldade. Por fim, na quarta vez, ele a resolveu completamente. Senti-me reconfortado, pois as dificuldades foram sendo retomadas ao longo do livro, não me sentia desesperado caso não entendesse algo.

A famosa “helicoidariedade” do ensino. Avançamos, mas voltamos para retomar algo, depois avançamos mais um pouco, voltamos outro pouco e assim por diante…

A definição completa da Ciência da Arte do Belo é:

A arte (significativa) de plasmar formas mimético-significantes e belas sobre determinada matéria, para fazer, mediante indução de sentimento e purgação das emoções, que o homem propenda ao verdadeiro e ao bom, e se afaste do falso e do mau. pg 194

Não darei a explicação detalhada, pois para isso há justamente o livro. Gostaria de destacar que essa definição é uma síntese genial dos mais diversos autores envolvidos no problema. A purgação se refere à famosa catarse de Aristóteles. A forma mimético-significante é como a mistura entre a mímese de Aristóteles e a forma significante de Susanne Langer. Propender ao verdadeiro e ao bom é de Santo Tomás e de Álvaro Calderón. O Doutor Angélico merece ser citado:

Das proposições prováveis, com efeito, procede o silogismo dialético, do qual trata Aristóteles no livro dos Tópicos. Às vezes, ao contrário, não se produz plenamente fé ou opinião, mas uma espécie de suspeita, porque a razão não se inclina totalmente para um dos membros da contradição, ainda que se incline mais para um que para o outro. E a isto se ordena a Retórica. Outras vezes, todavia só a existimatio [estimação, sentimento] se inclina para uma das partes da contradição por causa de alguma representação, à maneira como se produz no homem a repugnância de algum alimento, se se representa pelo aspecto de algo repugnante; E a isto se ordena a Poética; porque é obra do poeta o induzir a um ato virtuoso por alguma representação decente [ou conveniente]. Tudo isso pertence à Filosofia Racional [ou Lógica como todo potencial]: com efeito, é da razão induzir de uma coisa a outra. pg196

A arte deve induzir um ato virtuoso e está contida na lógica, logo deve propender à verdade também.

Os criticados Maritain e Gilson contribuíram ao falar numa “Filosofia da arte do belo”, ou seja, de certa maneira vislumbraram essa ciência do gênero, apesar de definição incompleta e até errônea em alguns sentidos.

Intermezzo

Depois há o capítulo destinado a responder à questão quia. Aqui as dificuldades apresentadas no início do livro serão praticamente solvidas. Quanto à sua verdade, a Ciência da Arte do Belo é ciência prática. Na questão das partes, Nougué cita as artes do belo consagradas. Na questão da bondade, Nougué vai usar o argumento que já adiantamos lá em cima. Assim como a ciência do homem depende da ciência do animal, a ciência da música depende da ciência da arte do belo, por exemplo.

Depois há o capítulo do método da Ciência falando de como se investigam as quatro causas nela. Depois há algumas capítulos citando noções filosóficas importantes para lidar com a segunda parte que trata das causas. Como já dissemos acima, Nougué é bem didático. Muitos não retomariam questões como substância e acidente no tomismo e dariam por pressupostos, mas são explicados detidamente no livro.

Das Causas

O professor explica o que é cada uma das quatro causas (escrevi um breve texto no medium sobre as quatro causas há um tempo). Também explica os modos das causas que são: a)posteriores e anteriores, b)per se e per accidens, c)Causas em ato e em potência, d)Causas simples e compostas

Após isso, Nougué dedica um capítulo a cada uma das quatro causas e de suas relações com a Ciência da Arte do Belo. Vale notar que a ordem é diferente da ordem da física geral e o professor a explica. Na física geral a causa material e formal são mais manifestas que as causas extrínsecas (final e eficiente). Nas artes do belo, o inverso se dá. Tudo começa com a finalidade do agente, logo a causas final e eficiente antecedem as intrínsecas (material e formal).

Das propriedades

Para finalizar o conteúdo propriamente dito (o resto do livro é composto de apêndices) temos as propriedades. Apesar de um capítulo curto, é um dos capítulos mais importantes, pois se uma arte do belo não apresentar uma das propriedades, não é arte conseguida. Sendo assim, são importantes critérios de julgamento. São em número de seis:

1-A comunicabilidade mimético-significante

Como Nougué afirma ao longo do livro, a comunicabilidade é próprio das artes no geral, então para a comunicabilidade própria das artes do belo devem ter uma diferença específica. A comunicação deve se dar pela forma da arte e esta forma deve mimetizar ações, paixões e caracteres.

2-Deleitabilidade séria

Aqui também temos um caso de algo próprio genérico que deve ter sua diferença específica. Tudo o que é belo é deleitável, mas a arte do belo possui uma deleitabilidade diferente. É deleitabilidade séria pois deleita o espírito, não apenas os sentidos. Eu particularmente não gostei do nome, que Nougué tomou emprestado de De Bruyne. Acho que seria melhor “Deleitabilidade profunda” ou “Deleitabilidade espiritual”.

3-Raptância

Eu diria que é o nó que nos prende à obra. Também podemos pensar naquele lugar comum das opiniões de hoje em dia “me sinto identificado com o personagem principal”. Creio que esse sentimento tenha ligação com a raptância. A identificação no caso é uma espécie de empatia pelo personagem, o que nos faz tomar suas dores como as nossas. Isso nos faz imergir na obra.

4-A indutibilidade de sentimento catártica

É a famosa catarse de Aristóteles. De algum modo as Artes do Belo devem nos purificar (não apenas no sentido aristotélico, que era mais restrito ao trágico, mas em sentido mais amplo).

5-A verossimilitude mimético-significante

Significa que a arte do belo deve seguir o princípio de causalidade. Boa parte das ficções científicas (se não todas) fracassariam nesse quesito, por exemplo, Matrix.

6-O ser análoga à virtude

Retirada de uma afirmação o livro VIII da Política de Aristóteles, o nome é um tanto autoexplicativo. Deve conduzir a alguma virtude pela semelhança da forma da obra.

Perspectivas para o futuro

Esse livro é um grande marco na história. O número de portas abertas é imenso.

A finalidade do livro do professor era dizer o que é a Ciência da Arte do Belo, suas partes, seu método, suas propriedades etc. E foi tremendamente feliz em seu propósito. Agora precisamos das aplicações da teoria elaborada por Nougué.

Em primeiro lugar, poder-se-ia elaborar uma obra para cada espécie de Arte do Belo. Como bem diz o professor, já está estabelecido a ciência de cada arte na história, contudo, precisamos de novas obras mostrando essas ciências à luz do tomismo. Sem a sua ciência genérica (a ciência da arte do belo) essas ciências estão incompletas. Precisamos de um “Da arte da música”, “Da arte do cinema”, “Da arte da literatura”, etc.

Em segundo lugar, precisamos de obras de críticas de cada arte em específico se valendo dos critérios apresentados por Nougué. Com as propriedades dadas pelo professor, podemos julgar se alguma obra é arte ou não. Deveríamos realmente estabelecer um “Círculo de crítica tomista da arte”.

Em terceiro lugar, um tratado sobre a Estética.

Em quanto lugar, deveríamos estabelecer uma análise minuciosa de doutrina estética ao longo da história. Por exemplo, precisaríamos escrever um livro contra a doutrina marxista ou kantiana “A doutrina estética kantiana à luz do tomismo”. Aqui também entra a análise minuciosa de cada movimento de crítica, seja musical, teatral, literária etc.

Em quinto lugar, deveríamos fazer uma nova história da Estética/Arte do Belo a partir dessas novas obras que teriam combatido as doutrinas errôneas.

E assim por diante.

Todas essas possibilidades foram abertas graças ao livro da Arte do Belo.

Resumo da ópera (conseguida)

Nos dias de hoje há duas correntes ligadas confusamente à estética e à arte do belo (bem distinguidas graças ao professor Nougué). Há as pessoas de bom-senso, mas sem grande embasamento filosófico. Elas defendem o belo e o bom nas artes. E há as pessoas com falsas doutrinas e aparente embasamento filosófico que difundem má arte.

Uma vez assisti ao documentário de Scruton sobre a arte, fiquei feliz ao ver uma autoridade com muita erudição defender o bom gosto. Mas infelizmente Scruton não chegou a fundar uma doutrina filosófica sólida sobre o assunto. Enquanto isso, as más doutrinas se espalham como praga.

Tudo isso muda agora com o livro de Nougué. Agora temos o fundamento científico para refutarmos e destruirmos o estrago que fazem na arte hoje em dia. Ao final do livro eu me sinto absolutamente seguro para demonstrar que “a arte deve propender ao bom e ao verdadeiro mediante o belo e afastarmos do mau e falso mediante o horrendo”.

--

--