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Um católico pode ser ancap?

20 min readSep 28, 2019

Catolicismo e sociedade: Nem anarquia, nem estado soberano

Nota: O presente artigo não foi escrito por mim, mas por um outro homem. Eu estou copiando o artigo para o meu Medium, mas estou fazendo algumas alterações nele. Se me recordo bem, o autor original era sedevacante no período da postagem.

1. O anarco-capitalismo

Um tema comum no meio “libertário” trata da compatibilidade entre o sistema de organização social chamado “anarco-capitalismo” e a doutrina da Igreja Católica, especificamente seu enfoque na questão da sociedade política. Busco trazer aqui uma breve e objetiva refutação da posição afirmativa sobre a compatibilidade, bem como mostrar que, por outro lado, o conceito de estado moderno também é incompatível com o catolicismo.

Primeiramente, vamos definir de forma clara os termos aqui usados: o anarco-capitalismo se propõe como a base para um sistema jurídico fundado no caráter exclusivo da propriedade privada. Nestes termos, é defendido que cada indivíduo possui direito exclusivo (soberania) sobre todos os bens externos adquiridos através do homesteading (apropriação original) ou da troca voluntária entre agentes, bem como cada indivíduo possui domínio exclusivo sobre seu próprio corpo. Dessa forma, classifica-se como ilícita toda relação entre agentes — bem como entre agentes e propriedades alheias — que não se baseia no consentimento entre as partes envolvidas. Tal visão, por consequência, exclui qualquer relação de submissão entre indivíduos e, não menos importante, de submissão entre indivíduos e instituições, tal como o estado.

Na sociedade pautada pela sistematização do anarco-capitalismo, todas as relações entre agentes devem respeitar os limites claros e objetivos da propriedade e do corpo alheio, sobre os quais cada indivíduo possui autonomia. Embora essa seja a base “eticamente objetiva” do conceito, entre os anarco-capitalistas há quem seja “conservador” e quem seja “progressista”. O conservador, particularmente, defende preferencialmente comunidades privadas pautadas por valores morais “tradicionais”, como o matrimônio, a abstenção do uso de drogas, a solidariedade comunitária et cetera. Nada impede que comunidades em acordo restrinjam tais práticas em suas respectivas jurisdições, mas deve ser apontado que essas restrições não estão implícitas e nem derivam de forma eticamente vinculante do centro da filosofia anarco-capitalista, qual seja: a soberania do proprietário sobre sua propriedade. Por esse motivo, uma postura como a supracitada é mera questão de preferência de cada comunidade, não podendo ser estendida à outros conglomerados caso eles não consintam com a respectiva pauta de valores morais. De forma ilustrativa: caso uma comunidade que reúna proprietários soberanos deseje constituir práticas “degeneradas” em sua respectiva área física de domínio, não há nada que uma comunidade “virtuosa” incomodada possa fazer no sentido de repressão direta, mas apenas observar seu desmantelamento civilizatório.

Pois bem, creio que todo anarco-capitalista honesto concorde com a minha explanação, já que, inclusive, não difere em nada da dada pelos mais proeminentes “libertários conservadores”, como Murray Rothbard, Walter Block e Hans-Hermann Hoppe, especialmente na obra mais famosa deste último, Democracia: O deus que falhou. Passemos agora para uma síntese do “estado moderno” para enfim fazermos a análise comparativa entre os três institutos aqui tratados.

2. O estado moderno

O estado moderno, ou estado-nação, ou ainda estado soberano, é um fenômeno da modernidade. De forma explicativa, é um fenômeno proveniente do racionalismo, do iluminismo, do humanismo e do republicanismo. Não obstante, por tais características, é algo que surgiu e se consolidou em simultaneidade à Revolução Francesa e seus análogos. Por obviedade, não surge exatamente ali, mas o estado soberano tem raízes fundacionais antigas, como, por exemplo, Marsílio de Pádua, um dos pioneiros do cesaropapismo; ou a Revolução Protestante, que propôs a nacionalização das igrejas e a eliminação da Igreja Católica como instituição externa e balizadora do governo civil; ou mesmo o “direito divino dos reis”, uma inversão espúria onde o rei (homem) não mais recebe de Deus o encargode governar, mas ele próprio define seu âmbito de governança.

De fato, desde o outono da Idade Média, o endeusamento do homem e o consequente esquecimento de Deus criou o terreno fértil para o modernismo político: não é mais Deus — através da igreja que instituiu — que delimita o limite da soberania do homem, mas o próprio homem que se auto-delimita.

O estado moderno é, assim, baseado na vontade do homem secularizado. Seja em uma república ou em uma monarquia, os homens (povo) ou o homem (monarca) possui uma soberania auto-referencial, onde o limite para governar está em suas próprias vontades. Enquanto a maioria dos estados modernos são considerados como repúblicas, também as monarquias sofreram com a crescente secularização, se desvencilhando de forma constante do controle externo da Igreja Católica. No cenário atual, as monarquias são “monarquias” apenas simbolicamente, pois de facto são repúblicas, admitindo um controle parlamentar democrático que limita o poder real, possuindo ele competências basicamente residuais. Nesse sentido, o “neo-monarquismo” de certos “conservadores” brasileiros é em essência modernista e nem um pouco reacionário.

No estado soberano, o governo é representativo, ou seja, é (teoricamente) guiado pela “vontade geral”, uma governança para o povo. Já nos governos não-representativos submetidos ao controle externo da Igreja — e aqui faço uma análise pessoal utilizando o termo “não-representativo” — a governança é do povo e pelo governante, mas sempre para Deus. Ou seja, a função do governante não é representar e viabilizar o desejo dos homens, mas sim o de Deus.

De forma conclusiva, o caráter de soberania no estado moderno significa que seu corpo representativo, que é em comumente eletivo, possui a capacidade de “último julgador” e de última voz no que toca a jurisdição. O estado soberano não admite controle externo por nenhuma instituição e qualquer permissividade nesse sentido é só um exemplo de exercício negativo da faculdade que tal poder lhe concede. Se o estado não tem a última voz, ele não é mais soberano.

No sistema descrito funcionam os países ocidentais, onde o humanismo se solidificou profundamente. Primeiro na Europa, depois no norte do continente americano e, mais recentemente, na América do sul e na Asia.

Podemos ainda traçar um paralelo com o sistema anarco-capitalista: enquanto nele o proprietário tem soberania sobre sua propriedade, o próprio estado moderno possui soberania sobre a nação, que tem limites geográficos e de jurisdição objetivos. Apesar das óbvias diferenças, há algo em comum no que toca a vinculabilidade da interferência de terceiros na comunidade/sociedade privada/soberana: a interferência externa precisa de permissão do proprietário/soberano. E nesse ponto ambos estão em desacordo com o que a Igreja diz sobre sua faculdade temporal.

3. A Igreja Católica

Para ilustrar a posição da Igreja sobre o assunto, nada melhor do que reproduzir suas declarações solenes. Os documentos aqui citados podem ser encontrados no Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, comumente conhecido como Denzinger, sobrenome do teólogo que primeiro o editou, em 1854. Procederemos então, primeiramente, citando as passagens e, ao final, explicando-os. Grifos e destaques do autor:

Papa Inocêncio III

Inocêncio III, Carta “Sicut universitatis” ao cônsul Acerbo de Florença, 30 out. 1198

Do dúplice supremo poder na terra:

Como Deus, criador de todas as coisas, colocou dois grandes astros no céu, o astro maior para presidir ao dia e o astro menor para presidir à noite, assim no firmamento da Igreja universal, que é chamada com o nome de céu, constituiu duas grandes dignidades: a maior para, como aos dias, presidir às almas e a menor para, como às noites, presidir aos corpos, e estas são a autoridade pontifícia e o poder real. Além disso, assim como a lua recebe a sua luz do sol e na realidade é menor do que este em quantidade e também em qualidade e igualmente em posição e efeito, assim o poder real recebe o esplendor da sua dignidade da autoridade pontifícia; e quanto mais adere à visão desta, mais é ornada de luz maior, e quanto mais se afasta das suas vistas, tanto mais vai perdendo seu esplendor.

Papa Bonifácio VIII

Bonifácio VIII, Bula “Unam sanctam”, 18 nov. 1302

[…]

O poder espiritual da Igreja:

Pelas palavras evangélicas aprendemos que neste seu poder há duas espadas, isto é, a espiritual e a temporal [são alegados Lc 22,38 e Mt 26,52]. …Uma e outra, portanto, estão em poder da Igreja, isto é, a espada espiritual e a material. Mas esta é usada em prol da Igreja, aquela, ao invés, pela Igreja, uma <manejada> pelo sacerdote, a outra pela mão dos reis e dos soldados, mas com a anuência e o consentimento do sacerdote. É necessário, de fato, que <uma> espada esteja sob a <outra> espada e que a autoridade temporal esteja sujeita ao poder espiritual. …Com tanta maior clareza quanto as coisas espirituais sobressaem às temporais, devemos afirmar que o poder espiritual supera, em dignidade e nobreza, qualquer poder terreno. …Pois a Verdade atesta que o poder espiritual deve instituir o poder terreno e julgá-lo, se não tiver sido bom.Portanto, se o poder terreno se desviar do reto caminho, será julgado pelo poder espiritual; se um poder espiritual menor se desviar, <será julgado> pelo que lhe é superior; se, porém, o poder supremo <se desviar>, poderá ser julgado só por Deus, não pelo homem, como atesta o Apóstolo: “O homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém” [1Cor 2,15]. Ora, esta autoridade, mesmo se dada a um homem e exercida por meio de um homem, não é humana, mas antes, um poder divino, dado pela boca divina a Pedro, a ele e aos seus sucessores, no próprio Cristo, que ele, como rocha firme, professara, na ocasião em que o Senhor disse ao mesmo Pedro: “Tudo o que ligares” etc. [Mt 16,19]. Portanto, quem resiste a este poder assim ordenada por Deus, “resiste à ordenação de Deus” [Rm 13,2], a menos que imagine, qual um maniqueu, que haja dois princípios, coisa que julgamos falsa e herética, dado que, segundo o testemunho de Moisés, não nos princípios, mas “no princípio Deus criou o céu e a terra” [Gn 1,1]. E declaramos, enunciamos, definimos que, para toda humana criatura, é necessário para a salvação submeter-se ao Romano Pontífice.

Papa João XXII

João XXII, Constituição “Licet juxta doctrinam” ao bispo de Worcester, 23 out. 1327

Erros de Marsílio de Pádua sobre a constituição da igreja:

[…]

(5) O Papa, ou também toda a Igreja tomada no seu conjunto, não pode punir com punição constritiva nenhum homem, por mais criminoso que seja, a não ser que o Imperador lhe dê autoridade para isso.

[Censura: os artigos acima citados,] …Nós os declaramos, por sentença, enquanto contrários à sagrada Escritura e inimigos da fé católica, heréticos ou semelhantes à heresia e errôneos; e também que os acima citados Marsílio e João são hereges, ou mais, manifestos e notórios heresiarcas.

Papa Alexandre VIII

Alexandre VIII, Artigos do clero galicano (19 mar. 1682) declarados inválidos na Constituição “Inter multiplices”, 4 ago. 1690

Artigos galicanos sobre os direitos dos Pontífices Romanos:

(1) Ao bem-aventurado Pedro e aos seus sucessores, vigários de Cristo, e à própria Igreja foi transmitido por Deus o poder sobre as coisas espirituais, que se referem à salvação eterna, e não ao invés aquele sobre as coisas civis e temporais; diz de fato o Senhor: “O meu reino não é deste mundo” [Jo 18,36], e ainda: “Dai portanto a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” [Lc 20,25], como também é válido aquele dito apostólico: “Cada alma esteja submissa às autoridades superiores; porque não há autoridade senão de Deus; aquelas pois que existem são estabelecidas por Deus; portanto, quem se opõe à autoridade se opõe à ordem estabelecida por Deus” [Rm 13,1s].

Os reis e os príncipes, portanto, segundo a ordem estabelecida por Deus, não podem ser submetidos, nas coisas temporais, a nenhum poder eclesiástico, e não podem ser depostos direta ou indiretamente em virtude da autoridade das chaves da Igreja, ou seus súditos ser afastados da lealdade e da obediência e desligados do juramento prestado de fidelidade; e esta sentença, necessária para o bem público, útil não menos à Igreja que ao Império, deve ser considerada conforme à palavra de Deus, à tradição dos Padres e aos exemplos dos Santos.

[…]

[Sentença judiciária da bula:] Todas e cada uma das coisas que, nas referidas reuniões do clero galicano realizadas no ano de 1682, foram tratadas e desenvolvidas quanto à extensão do direito régio ou quanto à declaração sobre o poder eclesiástico e as quatro proposições nessa contidas, com todos e cada um dos mandados, arrestos, validações, declarações, cartas, editos e decretos divulgados e publicados por qualquer pessoa, seja eclesiástica ou leiga, de qualquer modo que for qualificada, exercendo qualquer autoridade e poder, mesmo requerendo expressão individual, …declaramos, com base no presente <escrito>, que …por força do próprio direito, desde o início foram, e são, e para sempre serão nulas, ineficazes, inválidas, sem fundamento, privadas de força e de efeito, completa e totalmente vãs, e que ninguém é obrigado à observância delas ou de algumas delas, ainda que munidas de juramento.

Papa Pio VI

Pio VI, Constituição “Auctorem fidei” a todos os fiéis, 28 ago. 1794

[…]

Erros do Sínodo de Pistóia:

O poder da Igreja no que diz respeito à constituição e confirmação da disciplina exterior:

(4) A proposição que afirma: “É abuso da autoridade da Igreja transferi-lo <esse poder> além dos limites da doutrina e da moral e estendê-lo às realidades exteriores e exigir com a força o que depende da persuasão e do coração” e ainda: “Muito menos, pois, lhe diz respeito o exigir com a força exterior a submissão aos seus decretos”; se, com aquelas palavras indeterminadas “estendê-lo às realidades exteriores”, indica como abuso da autoridade da Igreja o exercício do seu poder recebido de Deus, do qual usaram os próprios Apóstolos em constituir e sancionar a disciplina exterior: herética.

(5) Naquela parte na qual insinua que a Igreja não tem a autoridade de exigir a submissão aos seus decretos senão mediante os meios que se ligam à persuasão; se tenciona que a Igreja “não recebeu de Deus o poder, não só de dirigir com conselhos e persuasões, mas também de mandar mediante as leis e de reprimir e obrigar os desobedientes e contumazes mediante um julgamento exterior e com penas salutares”: conduzindo a um sistema já em outra ocasião condenado como herético.

Papa Gregório XVI

Gregório XVI, Encíclica “Mirari vos”, 15 ago. 1832

Indiferentismo e racionalismo:

Chegamos agora a uma outra nascente transbordante dos males pelos quais lamentamos estar aflita, no presente, a Igreja, a saber, o indiferentismo, ou seja, aquela opinião perversa… <que reza> que em qualquer profissão de fé se pode conseguir a eterna salvação da alma, desde que os costumes se conformem à norma do que é reto e honesto. …E desta bem fétida nascente do indiferentismo brota a absurda e errônea sentença, ou melhor, delírio, de que se deva admitir e garantir para cada um a liberdade de consciência.

Papa Pio IX

Pio IX, Encíclica “Quanta cura”, 8 dez. 1864

[…]

Independência do poder da Igreja do poder civil:

Outros ainda, renovando as falsas e tantas vezes condenadas sentenças dos inovadores, ousam com total falta de pudor submeter ao arbítrio da autoridade civil a suprema autoridade da Igreja e desta Sé Apostólica, a ela atribuída pelo Cristo Senhor, enquanto negam todos os direitos desta Igreja e Sé a respeito das coisas que se referem à ordem externa.

Eles não se envergonham de afirmar que “as leis da Igreja não obrigam em consciência, senão quando promulgadas pelo poder civil; que os atos e decretos dos Romanos Pontífices relativos à religião e à Igreja precisam da sanção e aprovação, ou ao menos do consenso do poder civil; que as Constituições Apostólicas, com as quais se condenam as sociedades secretas — quer se exija ou não, nelas, o juramento de manter o segredo –, e com os quais seus membros e partidários são excomungados, não têm nenhuma força naqueles lugares do mundo onde essas confrarias são toleradas pelo governo civil. …”

[…]

Portanto, com a Nossa autoridade apostólica, reprovamos, proscrevemos e condenamos todas e cada uma das distorcidas opiniões e doutrinas, uma a uma recordadas nesta carta; e queremos e ordenamos que por todos os filhos da Igreja católica sejam tidas como absolutamente reprovadas, proscritas e condenadas.

Papa Pio IX

Pio IX, Sílabo de Pio IX, ou seja, coleção de erros proscritos em diversos documentos de Pio IX, emanado em 8 dez. 1864

Proposições do sílabo:

§ V. Erros a respeito da Igreja e dos seus direitos:

(19) A Igreja não é uma sociedade verdadeira e perfeita, completamente livre, nem dispõe de seus próprios e permanentes direitos, a ela conferidos por seu fundador divino, mas compete ao poder civil definir quais são os direitos da Igreja e os limites dentro dos quais ela pode exercer esses direitos.

(20) O poder eclesiástico não deve exercer a própria autoridade sem a permissão e o consentimento do governo civil.

[…]

(24) A Igreja não tem o poder de usar a força, nem algum poder temporal direto ou indireto.

(25) Além do poder que é inerente ao episcopado, ainda <lhe> é atribuído outro poder temporal, expressa ou tacitamente concedido pela autoridade civil e, portanto, podendo ser revogado pela autoridade civil quando lhe aprouver.

[…]

(27) Os ministros sagrados da Igreja e o Romano Pontífice devem ser absolutamente excluídos de toda administração e domínio das coisas temporais.

[…]

§ VI. Erros a respeito da sociedade civil considerada em si mesma ou em suas relações com a Igreja:

(39) O Estado, como origem e fonte de todos os direitos, goza de um direito tal que não é circunscrito por nenhum limite.

[…]

(42) No conflito entre as leis dos dois poderes prevalece o direito civil.

[…]

(54) Os reis e os príncipes não apenas estão isentos da jurisdição da Igreja, mas são também superiores à Igreja no dirimir as questões de jurisdição.

(55) A Igreja deve ser separada do Estado e o Estado da Igreja.

Papa Leão XIII

Leão XIII, Encíclica “Diuturnum illud”, 29 jun. 1881

O poder na sociedade civil:

Mesmo que o homem, incitado por certa arrogância e contumácia, tenha tentado muitas vezes se livrar do freio da autoridade, todavia nunca conseguiu não obedecer a ninguém. A necessidade impõe que em qualquer sociedade e comunidade humana haja quem presida.

…Neste contexto, convém atentar a que os que deverão presidir o Estado em certos casos podem ser eleitos pela vontade e juízo da multidão, sem que a doutrina católica a isso se oponha ou o contradiga. Ora, por tal eleição é designado o governante, porém não são conferidos os direitos de governo; nem é entregue o domínio, mas apenas se estabelece quem o exercerá.

Tampouco se discute aqui a forma de governo; com efeito, não há para a Igreja razão alguma pela qual não aprovasse o governo, seja de um só seja de vários, desde que seja justo e voltado para a utilidade pública. Por isso, salva a justiça, não se proíbe aos povos que adotem o tipo de regime político que melhor se adapte à sua índole ou às instituições e costumes de seus antepassados.

No mais, no que respeita à autoridade política, a Igreja ensina com razão que ela provém de Deus.

…Os que pretendem que a sociedade civil tenha nascido do livro consenso dos homens e buscam nesta fonte a origem do domínio como tal, dizem que cada pessoa cedeu uma parte de seu direito e que todos se colocaram voluntariamente debaixo do poder daquele que ficou com a totalidade desses direitos. Mas é grande erro não ver, como é manifesto, que os homens — já que não são de espécie solívaga — nasceram para a comunidade natural independentemente de sua livre vontade; e ademais, tal pacto que proclamam é evidentemente fantasioso e fictício, incapaz de outorgar ao poder civil tanta força, dignidade e firmeza quanto exigem a tutela do Estado e o bem comum dos cidadãos. Ao contrário, o poder só disporá dessas qualidades e garantias se se entende que emana de Deus, sua fonte augusta e santíssima.

Uma só razão tem os homens para não obedecer: a saber, se algo lhes é pedido que repugne ao direito natural ou divino; pois é divinamente proibido mandar ou fazer qualquer coisa em que seja violada a lei natural ou a vontade de Deus. Se, portanto, ocorre a alguém dever escolher entre desobedecer ao mandamento de Deus ou ao do governante, deve obedecer a Jesus Cristo, que ordena dar “a César o que pertence a César e a Deus o que pertence a Deus” [Mt 22,21], e, ao exemplo dos Apóstolos, deve vigorosamente responder: “É preciso obedecer a Deus antes que aos homens” [At 5,29].

Papa Leão XIII

Leão XIII, Encíclica “Immortale Dei”, 1 nov. 1885

A coordenação do poder eclesiástico e do civil:

Deus distribuiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes, a saber o eclesiástico e o civil, um à frente das coisas divinas, o outro, das humanas. Ambos são supremos cada qual em seu gênero; cada qual tem determinados limites nos quais fica circunscrito, e esses são definidos pela natureza e causa próxima de cada um; assim pode ser circunscrito como que uma esfera em que a ação de cada um se desenvolve segundo direito próprio. Mas porque seu domínio se estende sobre as mesmas pessoas, e podendo no exercício acontecer que o objeto seja o mesmo, embora a título diferente, mas de toda maneira objeto da jurisdição de ambos, Deus providentíssimo, por quem ambos poderes foram constituídos, deve também ter coordenado seus caminhos de maneira justa e ordenada.

É, pois, necessário que entre ambos os poderes haja certa relação de coordenação, que não sem mérito é comparada à conjunção que une no ser humano alma e corpo.

…Destarte, tudo o que, nas coisas humanas, é de certo modo sagrado, tudo o que pertence à salvação das almas ou ao culto de Deus, que seja assim por natureza própria ou, ao invés, se entenda como tal pela causa a que se refere, tudo isso abrange do poder e arbítrio da Igreja; o resto, porém, que abrange do gênero civil e político, com bom direito está submetido à autoridade civil, já que o Cristo ordenou dar a César o que pertence a César e a Deus o que pertence a Deus [Mt 22,21].

Ora, querer que a Igreja no exercício de suas funções esteja submetida ao poder civil, não é somente grande injustiça, mas também grande temeridade. Por tal fato é perturbado a ordem, já que se antepõe o que é natural ao que está acima da natureza: suprime-se ou, ao menos, se diminui grandemente a multidão de bens com que, se nada a impedisse, a Igreja cumularia a vida comum; além disso, abre-se caminho a inimizades e conflitos dos quais com demasiada freqüência os acontecimentos têm demonstrado quanto dano acarretam a ambas as sociedades.

Esboço da doutrina cristã do Estado:

É preciso entender que a origem do poder público deve ser buscado em Deus mesmo e não na multidão; que a liceidade das revoluções é contrária à razão; que contar por nada as obrigações da religião ou adotar atitude igual diante dos diversos gêneros <de religião> é inadmissível para as pessoas privadas, inadmissível para os Estados; que a liberdade ilimitada de pensar e de expressar publicamente o que se pensa não faz parte dos direitos do cidadão nem deve ser de modo algum contado entre as coisas que se devam favorecer ou proteger. Deve-se entender igualmente que a Igreja, não menos que o Estado, é uma sociedade perfeita por gênero e direito; e os que exercem a suprema autoridade não devem se atrever a forçar a Igreja para que lhes sirva ou esteja submetida, nem permitir que seja cerceada sua liberdade para cumprir o que deve fazer, nem que se lhe tire nenhum dos demais direitos que lhe foram outorgados por Jesus Cristo. Ora, nos assuntos de direito misto, corresponde grandemente à natureza, bem como aos desígnios de Deus, não a separação de um e outro poder, e muito menos o conflito entre eles, mas, manifestamente, a concórdia, e esta, de acordo com as causas próximas que deram origem a uma e outra sociedade. Eis, pois, o que a Igreja católica ensina sobre a constituição e regime dos Estados.

Liberdade dos cidadãos:

Ora, a julgar retamente, não se censura nestes pronunciamentos nenhuma das várias formas de Estado, já que não têm nada que seja contrário à doutrina católica e podem, se sabia e justamente utilizadas, manter o Estado na melhor condição.

Nem se censura que, em grau maior ou menor, o povo participe do governo, coisa que para determinados momentos ou regimes legais pode não apenas ser útil, mas pertencer ao dever de cidadania.

Além disso, não pode haver causa justa para que alguém acuse a Igreja de ser, na sua brandura e tolerância, mais reservada do que convém, nem de ser inimiga do que é genuína e legítima liberdade.

Na verdade, se a Igreja não admite que as diversas formas de culto divino gozem do mesmo direito que a religião verdadeira, nem por isso ela condena os governantes que, para alcançar algum bem ou evitar um mal considerável, toleram, por costume e uso, que essas diversas formas tenham seu lugar no Estado.

E também quanto ao seguinte a Igreja sói ter o maior cuidado: que ninguém seja forçado contra sua vontade a abraçar a fé católica, pois com sabedoria admoesta Agostinho: “O homem só pode crer voluntariamente”.

Na mesma linha, a Igreja não pode aprovar aquela liberdade que gera desprezo das leis santíssimas de Deus e pretende eximir da obediência devida à autoridade legítima. Tal é, na verdade, antes licença que liberdade, acertadamente chamada por Agostinho de “liberdade da perdição” e, por Pedro Apóstolo, de “véu da malícia” [1Pd 2,16]; mais, já que está fora do razoável, é uma escravidão: pois “quem comete o pecado é escravo do pecado” [Jo 8,34]. A essa se contrapõe a liberdade genuína e que se deve perseguir, aquela que, no que respeita ao âmbito privado, não permite que o homem seja escravo dos erros e paixões, que são os mais terríveis tiranos; e que, quanto ao âmbito público, governa os cidadãos com sabedoria, proporciona facilidade de aumentar amplamente seus bens e defende o Estado de ingerência alheia.

Ora, essa liberdade honesta e digna do homem, a Igreja a aprova mais que todos e nunca cessou de se empenhar e de se esforçar para conservá-la firme e intacta entre os povos.

4. Conclusão

Diante das declarações expostas, vemos que a Igreja distingue de forma clara o exercício do poder espiritual (de sua própria primazia) do exercício do poder temporal, que é de competência dos governos. Todavia, fica demonstrado de forma inequívoca que a Igreja vê o poder espiritual como balizador do temporal, que o segundo deve estar submisso ao primeiro, e que é faculdade da Igreja interferir no governo civil, punir cidadãos com constrição, inclusive, e até mesmo destituir governantes, caso seus governos se desviem da moralidade e exijam dos governados atos que atentem contra os mandamentos de fé e moral estabelecidos por Deus. Toda essa atuação é, ainda, independente do consentimento ou não do governante ou do próprio cidadão, pois ambos os poderes — espiritual e temporal — foram concedidos à Igreja. Embora o primeiro seja sua competência primária, o segundo é competência facultativa.

Analisando comparativamente todas as explicações fornecidas, não resta dúvida se não pela conclusão de que a posição da Igreja quanto a autonomia de governança — seja de governos sobre seus governados, seja de proprietários sobre suas propriedades — é incompatível com a figura do estado moderno, mas também com o anarco-capitalismo.

Enquanto o poder do estado moderno é limitado pela vontade da classe representativa, o poder do proprietário sobre sua propriedade é limitada apenas pelos direitos de propriedade alheios. Em ambos os casos, é negado à Igreja qualquer poder que não seja antes por eles concedido. Ademais, em ambos os casos a moralidade é subjetiva, definida pelo homem e não pode ter seu cumprimento forçado, algo que a Igreja expressamente nega.

Sendo assim, com fulcro especial na bula “Unam sanctam” de Bonifácio VIII, certificamos que, no que tange o poder temporal, apenas a Igreja tem soberania, pois pode exercer sua faculdade de última juíza nos governos temporais e, ao mesmo tempo, ninguém pode julga-la. Isso significa que, seja em um governo coletivo, seja em uma comunidade privada, se a Igreja ver necessário e conveniente, estará em seu pleno direito de intervir, independente de permissão e consentimento.

Desse modo, a questão do posicionamento da Igreja sobre como a sociedade deve ser organizada é respondida como colocado no subtítulo: nem anarquia, nem estado soberano.

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